“É preciso viver o extraordinário”

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“É preciso viver o extraordinário”

Um bate-papo com a nossa sócia-diretora sobre a sua trajetória como ultramaratonista e o que ela tem a nos ensinar sobre desafios e superação de limites.

Ela começou a correr aos 40 anos, a partir do desafio de uma amiga.  No início, era sofrido: no primeiro quilômetro, já estava sem fôlego. Hoje, Jane Carvalho – a nossa sócia-diretora da Qualidados – se prepara para percorrer 900 quilômetros em 26 dias, enfrentando altitudes de até 6 mil metros acima do mar e as intempéries do clima nas montanhas do Himalaia, no Nepal.  Em seu currículo, estão provas dos sonhos de ultramaratonistas do mundo todo, como a La Misión, na Patagônia Argentina, e a Tor des Geants, na Itália, que Jane foi a primeira brasileira a concluir.

Há muito tempo, porém, estas provas radicais deixaram de ser simples corridas e viraram trampolim para o mergulho num processo de autoconhecimento e transformação pessoal. Na entrevista abaixo, você conhece um pouco das aventuras vividas por Jane, aventuras que convidam qualquer um a refletir sobre a superação de seus próprios limites. “As pessoas precisam sair da zona de conforto e se permitir viver o extraordinário”, ensina a executiva.

Como a corrida entrou na sua vida?

Sempre tive necessidade de me movimentar. Desde criança, gostava de esporte.  Então, ao longo da vida eu já fiz capoeira, natação, bodyboard, joguei tênis, pratiquei mountain bike. Mas não gostava de correr. Até que uma amiga disse: não é que você não goste de correr, é que você não tem condicionamento para corrida. Então comecei pelo desafio, para provar que ela estava errada. E demorou um tempo para pegar gosto porque eu não tinha uma orientação. Era uma coisa meio sofrida: no primeiro quilômetro correndo, já sentia dores e dava vontade de parar.  Foi quando começaram a surgir os primeiros grupos de corrida, em 2005. Eu tinha 40 anos e entrei em um destes grupos.  E comecei a correr.  E é uma coisa muito interessante porque você vê a evolução. Cada quilômetro é uma vitória; você participa de provas, faz novos amigos, viaja. Daqui a pouco, já estava correndo uma meia maratona.

E como evoluiu para as provas de distância mais longa?

Em 2009, quando fiz a minha primeira maratona, no Rio, ainda havia todo um mito em torno da prova, que é considerada a mais nobre das Olimpíadas. As pessoas diziam que era um exagero, que eu ia envelhecer mais cedo, mas eu persisti. Em 2010, corri duas maratonas, uma delas na Grécia. E a cada ano eu fazia mais maratonas.  Em 2013, um amigo me falou de uma prova em Florianópolis chamada Praias e Trilhas, que tem 84 quilômetros: você faz 42 quilômetros em um dia e 42 no outro. Eu pensei: o meu treinador quer me matar porque eu quero fazer quatro maratonas em um ano e agora eu vou fazer duas em dois dias? Vou morrer. Mas entrei no site e me apaixonei. E foi muito legal, porque no início eu achava que não ia concluir o primeiro dia de prova, depois não sabia se teria condições de levantar pela manhã; na sequencia, pensei que não terminaria o segundo dia de prova e, ao final, acabei em terceiro lugar na minha categoria.  Foi aí que me apaixonei pelas trilhas.

Quais as provas mais desafiantes que você já concluiu desde então?

Em 2014, eu participei de uma prova em Madagascar, em que você percorre 250 quilômetros ao longo de sete dias, com mochila nas costas, comendo comida desidratada. Parecia uma loucura, mas voltei de lá encantada. Conheci pessoas que compartilharam a barraca comigo e que são meus amigos até hoje. Eles me fizeram prometer que voltaria para a próxima edição dessa corrida, no Equador. E em 2015 estava lá, correndo mais 250 quilômetros em sete dias. Depois disso, fiquei com vontade de experimentar coisas diferentes. Eu me inscrevi numa prova em Santa Catarina, onde você passa 24 horas em movimento, percorrendo 100 quilômetros. Nunca tinha feito nada assim, mas me saí super bem. Então tomei coragem e me inscrevi em uma prova na Patagônia, na Argentina, na qual é preciso correr 160 quilômetros em 76 horas. Foi em fevereiro de 2016. Consegui concluir em 68 horas, dormindo apenas três horas e 45 minutos durante todo o percurso. Ainda em 2016, participei de uma prova de 108 quilômetros na Colômbia e fui a primeira brasileira a concluir os 339 quilômetros da Tor des Geants, na Itália, dormindo apenas oito horas ao longo de um período de seis dias. Em 2017, voltei à Patagônia para uma prova de 250 quilômetros. Já em abril deste ano, participei de uma prova no Nepal de 170 quilômetros em nove dias. Nesta, o grande desafio é a altitude. Você sente fraqueza no corpo, não consegue dormir. Mas eu fiquei feliz porque meu corpo reagiu bem, embora a maioria das pessoas tenha adoecido.

Quais os momentos mais difíceis que você viveu ao longo dessa trajetória?

Dois mil e dezoito foi um ano em que tive de aprender lições importantes. Meu projeto era correr os 900 quilômetros da Transpyrenea, nos Pirineus franceses, e depois fazer mais uma vez a Tor des Geants, na Itália. Mas já no segundo dia de prova da Transpyrenea, com 120 quilômetros percorridos, eu machuquei o joelho e tive que abortar a prova. E na Tor des Geants, após 150 quilômetros, tive uma contratura muscular que me deixou imobilizada. Até então, eu estava acostumada a conseguir tudo que eu planejava. Então, foi muito frustrante. Mas acho que foi um aprendizado que a montanha me deu. A maior mensagem foi de humildade mesmo. Porque, ao mesmo tempo em que não devemos permitir que as crenças limitantes nos paralisem, também não é recomendável achar que podemos tudo. É preciso reconhecer a nossa posição de pequenez, nossos limites diante de tudo.

O que mais te encanta nestas provas de longa distância?

Cada prova é uma experiência, uma coisa que me move: você passa a maior parte do tempo só e aquele é um momento seu, com as suas alegrias, suas dificuldades. Às vezes você tropeça, cai e se machuca. Depois, vive euforia, alegria, plenitude. É tudo muito intenso e muito apaixonante. Há momentos de um sentimento de grande pertencimento e unidade com a natureza. São os momentos mais fantásticos e maravilhosos, difíceis de descrever. Você é um com a natureza. Ao mesmo tempo em que reconhece a sua condição, humildemente. E estes são os momentos em que me sinto mais presente. Por isso, para mim as trilhas são como um retiro, uma meditação. É um processo de expansão de consciência mesmo, talvez pela exaustão, pelo contato contínuo e longo com a natureza.

Que momentos mais inesquecíveis você viveu nestas provas?

São muitos momentos. Uma vez, na Patagônia, um cachorro me seguiu 85 quilômetros. Durante todo este percurso, eu olhava apenas para ele e para a lua: a lua mais linda e brilhante que já vi em toda a minha vida. Teve também o aparecimento das borboletas azuis. Em 2015, eu estava numa corrida em São Paulo e elas apareceram.  Era um momento muito difícil da prova, fazia muito calor e elas apareceram, trouxeram-me alegria e me guiaram por um tempo. E, a partir desta data, em todas as trilhas que eu fazia, as borboletas azuis apareciam.

O que mudou na Jane como pessoa e como profissional, após toda esta experiência?

Todas estas experiências incríveis me levaram a um processo de autoconhecimento.  Eu comprei uma roça em Ibicoara, construí uma casa lá e já estou com um projeto comunitário em mente.  É um processo de transformação mesmo, de metamorfose – e para mim a borboleta simboliza isso.  Nem sempre esta transformação é algo suave, porque você sai da sua zona de conforto e começa a se questionar. Quem sou eu? O que estou fazendo aqui?  Será que é isso que eu quero?  E uma coisa interessante é que, ao voltar agora do Nepal, eu me senti mais presente e mais do que nunca disposta a participar do processo que a empresa está vivendo hoje.  Nós tivemos uma ascensão no passado, depois tomamos as pancadas da crise, e agora estamos encontrando um caminho bacana de refortalecimento. A minha transformação coincide com a da empresa, mesmo porque sou parte integrante dela. Este foi o sentimento mais forte que eu trouxe do Nepal, a consciência de ser parte integrante de um todo. Eu faço parte disso e quero fazer parte da forma mais alegre possível. E realmente voltei muito mais alegre, tranqüila e consciente do meu papel.

O que você acha que a sua experiência tem a ensinar sobre superação de limites?

Eu acho que é uma experiência que ajuda a refletir sobre a importância de desafiarmos as nossas crenças limitantes, as nossas barreiras mentais. Eu não sou superatleta: sou uma pessoa comum, uma empresária, mãe de família, com uma vida mediana. Como uma pessoa assim pode pensar em ir para o Nepal e correr 900 quilômetros? Para mim, o extraordinário é tudo aquilo que nos desafia. Não precisa sair por aí correndo 900 quilômetros. Pode ser escrever um livro, ou viajar pelo mundo com uma mochila, sem planejamento – especialmente se você é uma pessoa que só viaja com tudo pré-definido. Esta é a provocação: desafiar seus limites. Porque as pessoas se boicotam, elas não se permitem viver o extraordinário. E você pode levar isso também para o mundo empresarial. Para promover uma cultura da inovação, é preciso levar as pessoas a pensar fora do quadrado, a sair da zona do conforto.

Qual o próximo desafio a ser superado neste universo das ultramaratonas?

Uma prova de 900 quilômetros no Nepal, com largada de uma base no monte Everest, a 5.364 metros de altitude. Só para chegar até a largada, a gente vai fazer um trekking de 10 dias. Depois disso, serão mais 26 dias, subindo e descendo. Será a prova mais exaustiva e desafiante que eu já fiz, em vários sentidos: pela distância, pela altitude, porque há muitos trechos de autossuficiência e não iremos contar com a mesma estrutura da última prova que fiz no Nepal. Além disso, como são muitos dias, estaremos sujeitos a uma variedade grande de fenômenos climáticos. A montanha é imprevisível.

2019-05-27T17:43:55-03:0027/05/19|

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